domingo, 27 de setembro de 2009

Dissabores, morte e vida


Marcos era rapaz humilde, vivia com a mãe viúva e mais dois irmãos no subúrbio de uma cidade qualquer. Todos os dias era a mesma luta, Marcos acordava antes das 6h00, comia um dos pães que o dono da padaria de perto do cursinho reservava-lhe quando não eram de todo vendidos, acordava a mãe para seguir para o apartamento da patroa e os irmãos para ficarem na creche, só então tomava os dois ônibus lotados que o conduzia até o trabalho. A antiga oficina mecânica do Sr. Aluísio era para o jovem mais que um emprego, significava para ele o seu reduto diário, o lugar onde seu pai havia aprendido o ofício que hoje lhes garantia um pouco de dignidade.
Sob duras penas e a instabilidade do início da década de 80, Antônio conseguiu juntar algum dinheiro para construir a pequena casa de sala, cozinha e um quarto, o banheiro ficava na parte de fora, perto de onde atualmente fica uma torneira enferrujada e a velha lavadora tanquinho. Toninho, como era chamado pela esposa, não era homem estudado nem falava o português correto, não fazia a menor noção do que era a Emenda Dante de Oliveira que o telejornal da noite tanto falava. O que Toninho conhecia bem de perto eram as dificuldades que enfrentava para pôr comida em casa, diziam a ele que tudo estava tão caro por causa da inflação, Toninho assentia mas no fundo não sabia a quem culpar. Compreender tudo aquilo era para o pai de família apenas uma parte do mal encaixado quebra-cabeças que sua vida formava.
No fim de 1985 nasceu Marcos, um garotinho gordo, de olhos arregalados e cabelo castanho cacheado. O menino era esperto, aprendia dia rápido e falava feito criança rica, adjetivava tudo quanto podia e dizia que um dia ia conhecer Paris, Veneza e Estocolmo. A realidade era dura e as necessidades batiam à porta, sob choro e protestos da mãe Marcos deixou a escola na 8ª série para ajudar o pai na oficina. O menino era obstinado, não sabia muito bem o que esperar do futuro, mas sentia que os estudos representavam o caminho para algo muito melhor. Sem contar nada ao pai e após um ano de afastamento, Marcos matriculou-se novamente na escola do bairro.
O falante garoto havia se tornado um pequeno grande homem, trabalhava o dia todo e depois ia direto para a escola, com as unhas ainda sujas de graxa. Lucas e Matheus eram gêmeos, chegaram após arriscado parto, numa noite quente de fevereiro. A família enfim parecia respirar novos ares. No entanto, há pessoas que parecem ter nascido para desventuras, às vezes a vida parece irônica no trato com aqueles que mais precisam.
Em setembro daquele ano não se falava em outra coisa durante as aulas ou no horário do intervalo, a maior potencia do mundo encontrava-se abalada, acuada, ofendida. Mas não foram só as torres do World Trade Center que vieram abaixo, todo o concreto moral que preenchia as lacunas da vida de Marcos agora estava em ruínas, todos os alicerces, construídos com sacrifício anos a fio, haviam implodido. Numa manhã de terça-feira, dessas de céu azul, em que você acorda disposto, Antônio deixara sua marca vermelha num para-choques de ônibus. Assim como no centro de Manhattan brotara uma imensidão de escombros, o jovem Marcos estava perdido entre os entulhos da sua destruição particular.
O rapaz mais uma vez foi obrigado a amadurecer mais do que condizia com sua idade. A vida, que jamais havia sido doce, agora com brutal terrorismo intervinha nos sonhos do menino que quando criança sonhava com a utopia. Marcos, apesar do peso das responsabilidades, da lembrança e da dor, não abandonou o seu ideal de mudança.
Aos 17 anos, participou de sua primeira eleição. Pela tv Marcos via um sujeito barbudo, que assim como ele, vinha de uma história de lutas e dificuldades, de uma posição não privilegiada na sociedade. Não fora difícil decidir seu voto, apesar de tantas cicatrizes Marcos acreditava nos políticos e ainda conservava certa inocência.
Foram quase duas décadas, parece pouco tempo quando se trata de histórias de vida, mesmo assim, Marcos já passou por experiências que boa parte das pessoas morre de velhice e não vivencia. Ele continua ao lado do Sr. Aluísio na oficina, só que agora é rapaz estudado, cuida das notas fiscais de serviços, gerencia os gastos, organiza os arquivos. À noite Marcos frequenta cursinho, ganhou uma bolsa para o semi-extensivo e vai prestar o vestibular em dezembro. Apesar de novo, Marcos já sabe que inúmeras vezes as circunstâncias se mostram desfavoráveis e a vida, incoerente. Mas sabe também que sim, é possível, mesmo que por meio de esforços inacreditáveis, escrever uma história diferente, algo bom, para se ter orgulho. Ano que vem Marcos completa 20 anos, e pretende celebrar esta data junto de seus futuros colegas de faculdade. Alguém duvida que ele chegue lá?

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