quinta-feira, 2 de junho de 2011

Entre camas, latidos e salsichas


Farto de acordar todos os dias com o latido estridente do cachorro do vizinho, Caio pulou da cama certo de que aqueles seriam os últimos sonidos emitidos pelo cão. Na cozinha, abriu a geladeira a fim de encontrar algum petisco que chamasse a atenção do saco de pulgas que morava ao lado. Rasgou o plástico que envolvia a bandeja de salsichas de frango, pegou duas e pôs-se a pensar. O plano era acabar com o cachorro do seu Joarez. Não o homem barrigudo e de meia idade cuja mania de lavar o carro impreterivelmente todas as segundas e quintas tanto o irritava. Caio queria calar de uma vez por todas o pinscher ancião que, após dois atropelamentos e um câncer testicular, ficara apenas mais azucrinante.

Temendo perder o ímpeto que o impulsionava, correu até a despensa e apanhou o sempre útil saquinho de Racumin, aquele popular raticida da Bayer que é tiro e queda no combate aos roedores. Pela pequena diferença de tamanho entre um rato viçoso e o cãozinho da casa ao lado, supôs que somente alguns pedacinhos da isca dariam conta do recado. Com a salsicha cortada perpendicularmente, depositou com cuidado quatro grãos de veneno no interior do alimento, acompanhou ansioso os 15 minutos que restavam até que o vizinho saísse para trabalhar e desceu para o primeiro piso.

Lá, Caio se certificou de que não havia ninguém perambulando pelo corredor, abaixou-se em silêncio e, com esforço para que a armadilha não se desmanchasse no atrito entre porta e chão, passou o presente letal por debaixo da entrada. Depois, chamou em tom quase inaudível o cão cujo nome, por ter sido dado no mesmo período histórico, homenageava o único presidente brasileiro cassado. Ao perceber que o importuno animal se dirigia à porta, Caio voltou ao seu apartamento no segundo andar. No dia seguinte e na próxima quinzena que o sucedeu, paz. Não havia som algum, exceto o também incômodo barulho da Variant 79 de seu Joarez.

Numa bela manhã de domingo, porém, às 7h45 em ponto, Caio despertou ao som de latidos. Aguçou os ouvidos para identificar de onde vinha o ruído e logo constatou: originava-se no apartamento de baixo. E, para a infelicidade e fim da tranquilidade matinal de Caio, agora eram ganidos diferentes. Seu Joarez, após ter gastado considerável parcela de suas economias com o envenenamento de Collor, resolveu que uma companhia ajudaria na recuperação do pinscher que, vaso ruim que era, peitava até mesmo a morte. Elizabeth, tal qual a monarca inglesa, era uma dama. É claro que ela, assim como Collor, ladrava insistentemente toda vez que o dono saía de casa. Rouco e sóbrio, seu latido tinha algo de nobre. Mas nobreza nada tem a ver o porre que é aguentar cachorro ranheta quando se quer e precisa dormir sossegado. Caio teria de aumentar a dose de Racumin, e usar duas salsichas da próxima vez.

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