domingo, 22 de novembro de 2009

Bagunçada bagagem


Quando a luz do Sol enfim transpôs a persiana Fred tomou coragem para deixar a cama. Sobre o criado mudo estavam o cinzeiro, o maço de cigarros e o saudoso retrato que ele havia tirado com Ariel no outono passado. Naquela época as preocupações não eram as mesmas de agora, naquele tempo as brigas e discussões não surtiam efeito algum, eles se sentiam inabaláveis. Hoje as coisas não mais funcionavam daquela maneira, tudo estava diferente, apesar de Ariel ainda conservar o olhar tenro e sua pele ainda cheirar a alecrim.
Há algum tempo atrás, após o término daquela aula de ética que era um porre, Fred e sua moça juraram amor eterno. Ele beijou a mão suave de sua pequena enquanto inalava o perfume que vinha de seus cabelos, tão curtos quanto os dele, mas de uma beleza incomparável. Fred prometeu que se casariam após a faculdade, Ariel assentiu, já que não restavam dúvidas de que aquele era o homem com o qual ela queria amanhecer todos os dias.
Antes mesmo de lavar o rosto, o rapaz acende um cigarro, senta sobre o pufe vermelho ao lado da cama e se põe a recordar momentos de uma história que por longa data foi como um sonho bom, daqueles em que a gente não quer nem acordar. Abraçada ao travesseiro estampadol, Ariel dormia serena e ingênua, como quem dá de ombros para tudo o que pertence ao mundo desperto.
Fixados com imã na porta da geladeira estavam a conta de luz e o boleto para pagamento do aluguel do pequeno apartamento. Na despensa havia apenas um vidro de Nescafé e de azeitonas, açúcar, óleo e um pacote de arroz pela metade. Desde que decidiram morar juntos os dois passavam por apuros. Os pais de Ariel desaprovavam o romance, por conta disso mandavam apenas o dinheiro que a garota gastava com transporte e alimentação durante o período de aulas. Fred era estagiário numa agência de publicidade, ganhava pouco. Da mãe, funcionária pública, obtinha apenas o dinheiro do aluguel.
Fitando de longe a ultrasson jogada num canto do quarto o rapaz entendia o quanto amores arrebatadores e realidade podem representar elementos antagônicos. No dia em que Ariel trouxera suas roupas e pertences para o número 104 do residencial Manuel Bandeira nem lhe passava pela cabeça engravidar no mês seguinte. Tudo bem que os dois já haviam pensado em um casal de filhos e em todos os presentes que circundariam a árvore de natal nos tempos de festa, mas aqueles eram planos para uns oito ou dez anos adiante.
Ainda restava um ano e meio para a formatura e seu ingresso efetivo na tão sonhada profissão, entretanto, Fred já sabia o que era fazer alguns serviços por fora para pagar uma conta que sua renda mensal não conseguia cobrir. Dois anos para planejar seu casamento e arquitetar a lua de mel em Porto de Galinhas, e daqui a seis meses o jovem já seria pai. Era moço e não tinha muito conhecimento de mundo, mas agora tinha ciência de que a falta de dinheiro realmente pode abalar relacionamentos.
Fred sente um lampejo desesperador, um nó angustiante na garganta. Olha para o telefone e pensa em ligar para a mãe, chorar e pedir abrigo contra as quimeras que lhe assombravam a mente. Na cama, Ariel desperta e lhe sorri um sorriso encantador, o que logo o faz desistir da ligação, acender outro cigarro e voltar para a cama.

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