sábado, 13 de fevereiro de 2010

Redentora Visita



Acordou com aqueles olhos de ressaca, vermelhos e inchados como se tivessem dormido por semanas. Parou ante ao espelho do banheiro sujo. A imagem que via era a de um sujeito magro, de braços finos e longos, dentes amarelos e cabelos que lhes caíam até as maçãs do rosto. Lavou a face coberta de pêlos ralos, bebeu água direto da torneira e mijou todo o resultado da noite passada. Cuspiu para o vaso o gosto amargo da boca e, por um momento, pediu que a descarga levasse também algumas de suas memórias.
Na cama novamente, acendeu e tragou seu cigarro barato. Logo na primeira brasa imaginou o quão eficaz seria ter, assim como o urinol, um dispositivo que expelisse toda sorte de excrementos. Resíduos fétidos não absorvidos de seus desamores, relacionamentos malsucedidos e frustrações diversas. Pensou estar delirando.
Abriu as cortinas para verificar se o mundo lá fora estava tão desajustado e mórbido quanto ele o estava. Através da janela observava-se um céu em dégradé, que ia do azul turvo ao cinza triste. Os automóveis, a poucos metros do pequeno edifício de três andares, corriam mudos e pareciam não ter sentido. As pessoas apressavam o passo para fugir da chuva que se aproximava e não olhavam umas para as outras. Pareciam formigas desorientadas e vacilantes.
Alheio ao movimento da rua, tragou o cigarro até o filtro e jogou a bituca na calçada, sem ao menos ter o cuidado de não acertar alguém. Olhando para o nada, achou que o dia combinava com um acontecimento incomum, que agitaria a vizinhança e lhe safaria de sua própria existência. Quis acabar-se na grama do jardim do condomínio. Riu de sua tolice quando se deu conta de que morava no primeiro apartamento logo após o térreo.
Saiu da janela e vestiu o jeans surrado que amarrotava-se junto à parede. A campainha soava delicadamente. Abriu a porta sem espiar pelo olho mágico. Ensaiou uma expressão de surpresa ao deparar-se com a velha mãe, que trazia no rosto um enorme sorriso terno. A mulher entrou, olhou para o filho com os olhos que melhor traduzem a beleza das coisas. Tirou da sacola de feira um potinho com bolinhos de chuva ainda quentes. Acredite, ela fazia os melhores. Tirou também um embrulho, pediu que o filho abrisse. E ele o fez. O que era? Lembranças. Amáveis lembranças envoltas num papel vermelho brilhante. Recordações que cheiravam a pipoca, groselha e maçã do amor. O rapaz rendeu-se às lágrimas. Acariciou o Fusca preto que certo dia ganhara no tiro ao alvo, no parque de diversões que havia se instalado no bairro em que morava. O brinquedo estava perfeito. Ao contrário dele, conservara ilesa toda a simplicidade e a inocência da infância. O filho encolheu-se no chão, recostou a cabeça no colo da mãe e viu nas rugas daquele rosto um motivo para sair do poço de estupidez e perturbação que pouco a pouco o afogava. A velha afagou os cabelos do filho e disse com a voz mais aveludada que existe: - Volta para casa. O seu quarto, suas coisas, o meu amor e tudo o que você abandonou continuam como esse carrinho, intactos.

4 comentários:

  1. ararssa patriciaaaa


    ficou ótimo o texto dan... Ainda que triste, muito bom. Acho que a simplicidade dos toques ficou bem elegante.

    Abração

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  2. em análise - gosto do Q e como tu escreve.. em tempos realizarei passíveis apreciação. abrz

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  3. Nao sei nem o que te dizer Dan...
    To arrepiada, sem fala, emocionada.
    Como vc consegue:?! Me diz...
    MEU MENININHO INCRIVEL *-*

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  4. menina do cachecol colorido22 de março de 2010 às 21:26

    sempre perfeito, você sabe o quanto amo ler os seus textos, independentes de tamanhos ou qualificações, você é ótimo, na verdade, tem ficado cada dia melhor.

    com carinho e muita saudades,

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